MULHER VESTIDA DE HOMEM


Dizem que à noite Margará passeia
vestida de homem da cabeça aos pés
vai de terno preto, de chapéu de lebre
na cabeça enterrado, assume
o ser diverso que nela se esconde,
ser poderoso: compensa
a fragilidade de Margará na cama

Margará vai em busca de quê? de quem?
de ninguém, de nada, senão de si mesma,
farta de ser mulher. A roupa veste-lhe
outra existência por algumas horas
em seu terno preto, foge das lâmpadas
denunciadoras; foge das persianas
abertas; a tudo foge
Margará homem só quando noite

calças compridas cigarro aceso
(Margará fuma vestida de homem)
corta procissão sozinha, as ruas
que jamais viram mulher assim.

nem eu vejo, que estou dormindo.
Sei que me contam. não viu ninguém?
casimira negra, negras botinas,
talvez bengala,
talvez? revolver.
esta noite-já decidi-levanto
saio solerte, surpreendo Margará,
olho bem pra ela
e não exclamo reprovando
a clandestina veste inconcebível
Sou seu amigo sem desejo,
amigo-amigo puro,
desses de compreender sem perguntar.
não precisa contar-me o que não conte
a seu marido nem a seu amante.
A (o) esquiva Margará sorri
e de mãos dadas vamos
menino-homem, mulher homem,
de noite pelas ruas passeando
o desgosto do mundo malformado.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

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